Quando não há penetração, o ato libidinoso cometido contra menor de 14 anos não é considerado estupro de vulnerável, mas importunação sexual. O entendimento é da 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. A decisão é da última quarta-feira (28/10).
No caso concreto, que tramita em sigilo, o paciente foi condenado em primeira instância a 18 anos de detenção depois de molestar sexualmente sua sobrinha. No momento dos fatos, a menina tinha oito anos.
O TJ-SP, no entanto, reformou a sentença, condenando o homem a um ano e quatro meses, em regime aberto. A pena foi substituída por prestação de serviços à comunidade. Para a corte estadual, a conduta descrita se enquadra melhor no crime de importunação sexual, já que não houve “conjunção carnal”, jargão do Direito que se refere à penetração.
“Parece claro que, ao aludir a outros atos libidinosos alternativamente à conjunção carnal, o legislador não visou qualquer conduta movida pela concupiscência, mas apenas aquelas equiparáveis ao sexo vaginal. E os atos praticados pelo apelante — fazer a vítima se sentar em seu colo e movimentá-la para cima a fim de se esfregar nela e apertar os seus seios — por óbvio, não possuem tal gravidade”, afirmou o relator do caso, desembargador João Morenghi.
Ainda segundo a decisão, o comportamento do acusado “se insere entre a contravenção [prevista no artigo 61 da Lei 3.688/41] e o estupro”, melhor se amoldando ao artigo 215-A do Código Penal, que tipifica a importunação sexual.
“Irrelevante que se trate de ofendida menor de 14 anos, a indicar violência presumida. À míngua de determinação legal em sentido contrário, nada obsta que pessoas nessa faixa etária sejam vítimas do crime identificado [no artigo 215-A do CP]”, conclui a decisão.
O Paciente foi defendido pelos advogados Lucas Dantas e Lucineudo Pereira de Lima, sócios do escritório Pereira Lima & Dantas – Sociedade de Advogados.
Controvérsia
De 2009 a 2018, foi pacificado o entendimento de que qualquer ato libidinoso com menores de 14 anos configura estupro de vulnerável (artigo 217-A do CP).
Em 2017, o Superior Tribunal de Justiça chegou inclusive a editar a Súmula 593, segundo a qual “o crime de estupro de vulnerável configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”.
Ocorre que em 2018 foi editada a Lei 13.718/18, que altera o Código Penal, introduzindo o tipo penal da importunação sexual. Segundo o dispositivo, “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima” é crime contra a liberdade sexual, passível de pena de um a cinco anos de reclusão.
De lá para cá, algumas decisões isoladas, como a do TJ-SP, passaram a alterar condenações por estupro de vulnerável, transformando-as em importunação sexual.
A própria corte estadual tem outro precedente nesse sentido, como um julgado de 2019 da 16ª Câmara Criminal do TJ-SP. Segundo pesquisa feita pela advogada criminalista Paula Sion, também há decisões semelhantes nos TJs de Santa Catarina, Rondônia e Goiás.
A jurisprudência do STJ, no entanto, vai quase integralmente no sentido inverso. Na maior parte dos julgados sobre o tema, a corte superior entendeu não ser possível desclassificar o estupro de vulnerável para importunação sexual.
Em julho de 2020, o STJ chegou a divulgar uma revista de jurisprudência para mostrar como a corte tem tratado o tema. Até junho deste ano, quase todos os julgamentos afirmam ser descabida a desclassificação (ver lista de julgados aqui).
O entendimento corrente é o de que “em razão do princípio da especialidade, é descabida a desclassificação do crime de estupro de vulnerável para o crime de importunação sexual, uma vez que este é praticado sem violência ou grave ameaça, e aquele traz ínsito ao seu tipo penal a presunção de violência ou de grave ameaça”.
A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal também já decidiu pela impossibilidade de alterar a condenação por estupro de vulnerável pela condenação por importunação sexual. Trata-se do HC 134.591.
Precedente perigoso
Segundo a advogada criminalista Maira Machado Frota Pinheiro, a decisão do TJ-SP “é de uma imprecisão técnica extremamente violenta, porque abre um perigoso precedente para a segurança das crianças”.
Ela explica que o tipo penal da importunação sexual trata de situações em que há atos libidinosos sem anuência, sem violência ou grave ameaça, praticados exclusivamente contra não vulneráveis.
“O estado de vulnerabilidade torna a conduta inerentemente violenta. Não tem qualquer condição de um ato libidinoso com uma criança de oito anos não ser um ato de violência. Porque uma criança de oito anos não tem condição de consentir”, diz.
Ainda segundo ela, “a decisão relativiza uma série de situações que configuram estupro de vulnerável”. “Em muitas das situações em que tratamos de abusos contra crianças não há penetração do falo — a que se atribui tanta centralidade nessa decisão da 12ª Câmara. Ainda assim, esse tipo de abuso vai marcar a vida dessa criança para o resto da vida dela.”