O Plano Diretor como instrumento de justiça social e redução das desigualdades no espaço urbano

Nos últimos dias várias reportagens relacionadas à minuta do Plano Diretor de Campo Grande que tramita na Câmara têm sido veiculadas nos meios de comunicação com informações que não são verdadeiras.

Assim, a instituição do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul esclarece à população da capital:

– Tanto a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), quanto a Outorga Onerosa de Alteração de Uso são instrumentos urbanísticos obrigatórios para os municípios brasileiros com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes, segundo o artigo 42, item II, da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade);

– Este conceito, trazido pela legislação federal há 17 (dezessete) anos, foi e vem sendo debatido em inúmeros municípios brasileiros, contando sempre com o apoio do Ministério das Cidades. Trata-se, portanto, de um instrumento urbanístico instituído para todo o território nacional com o objetivo de corrigir distorções históricas no processo de ocupação das cidades brasileiras;

– A OODC corresponde ao instrumento urbanístico por meio do qual o município estabelece um coeficiente de aproveitamento básico, o qual poderá ser ultrapassado até atingir o coeficiente de aproveitamento máximo permitido, mediante concessão onerosa efetivada através do pagamento de contrapartida por parte do beneficiário;

– Conforme estabelecido pelo Estatuto da Cidade (artigo 28, § 1º), o coeficiente de aproveitamento de um terreno é a relação entre a área edificável (ou seja, a área construída computável da edificação) e a área do terreno, a qual determina, de forma genérica, limites para as edificações urbanas. Assim, caso o coeficiente de aproveitamento de um terreno corresponda a 1,0, isto significa que a legislação permite construir neste terreno uma edificação com área total igual à do próprio terreno;

– A maior parcela da população sequer utiliza o coeficiente 1,0. Pegue o exemplo da casa onde você mora: qual o tamanho do seu terreno? qual a área construída da sua casa? Divida a área construída da sua casa pela área do terreno e encontre qual é o coeficiente de aproveitamento que você efetivamente utiliza. Muito provavelmente ele será inferior a 1,0. Os altos coeficientes são utilizados apenas por grandes empreendimentos, como os edifícios de vários pavimentos, portanto a OODC não irá afetar a maioria absoluta dos proprietários;

– O coeficiente de aproveitamento básico existe na legislação de Campo Grande desde 1988, quando foi aprovada a primeira Lei de Uso do Solo (Lei n. 2567/1988). Na atual Lei de Uso do Solo (Lei n. 74/2005), os coeficientes de aproveitamento básico são altamente desiguais, variando de 1,0 até 6,0, conforme as zonas;

– Os terrenos urbanos possuem vários atributos de valor, como por exemplo, a localização, a distância dos equipamentos e serviços, a presença ou não de infraestrutura, a declividade, a frente, a área/metragem, o coeficiente de aproveitamento, dentre outros. Como Campo Grande apresenta coeficientes de aproveitamento básico muito desiguais entre si, que vão de 1,0 a 6,0, isso implica valorizações diferenciadas de porções do território urbano, supervalorizando algumas delas, as quais passam a se tornar inacessíveis a maior parte da população; por sua vez, passa a ocorrer a desvalorização de outras áreas, criando um espaço urbano fortemente desigual e pouco sustentável;

– Durante o processo de revisão do Plano Diretor de Campo Grande, foram elaboradas várias minutas diferentes. A primeira minuta, apresentada no ano de 2016, contou com contribuições de um Grupo Técnico, evoluindo para uma segunda minuta. Naquela ocasião, a minuta e o próprio PLANURB (Instituto Municipal de Planejamento Urbano) defendiam a adoção do coeficiente de aproveitamento básico igual a 1,0 a fim de atender à determinação do Ministério das Cidades;

– A OODC não se destina a impedir a verticalização nos municípios brasileiros, como tem sido equivocadamente veiculado por alguns meios de comunicação, nem se posiciona contra a verticalização, apenas traz regras mais racionais e justas para a sua realização; 

– A OODC, fruto do pacto nacional representado pelo Estatuto da Cidade, destina-se à gestão social do solo urbanizado, buscando uma melhor distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;

–  Em 06/03/2008, voto do STF proferido pelo Ministro Eros Grau sobre a OODC expôs o seguinte:

“Solo criado é o solo artificialmente criado pelo homem (sobre ou sob o solo natural), resultado da construção praticada em volume superior ao permitido nos limites de um coeficiente único de aproveitamento. (…) Não há, na hipótese, obrigação. Não se trata de tributo. Não se trata de imposto. Faculdade atribuível ao proprietário de imóvel, mercê da qual se lhe permite o exercício do direito de construir acima do coeficiente único de aproveitamento adotado em determinada área, desde que satisfeita prestação de dar que consubstancia ônus. Onde não há obrigação não pode haver tributo. Distinção entre ônus, dever e obrigação e entre ato devido e ato necessário. (…) Instrumento próprio à política de desenvolvimento urbano, cuja execução incumbe ao Poder Público municipal, nos termos do disposto no artigo 182 da Constituição do Brasil. Instrumento voltado à correção de distorções que o crescimento urbano desordenado acarreta, à promoção do pleno desenvolvimento das funções da cidade e a dar concreção ao princípio da função social da propriedade (…).” (RE 387.047, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 6-3-08, DJE de 2-5-08)

– Portanto, não se trata de imposto, pois a contrapartida financeira será cobrada apenas de quem quiser construir acima do coeficiente de aproveitamento básico, ou seja, incidirá apenas sobre os grandes empreendimentos;

– Importante mencionar que o potencial construtivo de um terreno (seja subterrâneo, seja aéreo) pertence à coletividade e deve ser gerido pelo município de forma equilibrada e sustentável, considerando os interesses da sociedade como um todo e NÃO O INTERESSE DE SETORES com poder econômico;

– O Ministério das Cidades, por meio do Conselho das Cidades, expediu a Resolução Recomendada nº148, de 7 de junho de 2014, cujo teor complementa o Estatuto da Cidade:

“Art. 1º: Recomendar a adoção do Coeficiente de Aproveitamento Básico como princípio balizador da política fundiária urbana municipal, a ser utilizado por todos os municípios até 2015.

Art. 2º Definir que o Coeficiente de Aproveitamento Básico deverá ser unitário (um) e único para toda a zona urbana.

Parágrafo único – Poderão ser adotados, em função do interesse público local, coeficientes de aproveitamento menores do que 1 (um) para áreas de proteção ambiental ou patrimônio cultural.

Art. 3º A possibilidade do exercício de direitos de construir adicionais aos definidos pelo Coeficiente de Aproveitamento Básico deve estar subordinada ao interesse público.

§ 1º – Somente as áreas adequadamente servidas de infraestrutura, e por isso capazes de receber maior adensamento, poderão ser passíveis da atribuição de direitos construtivos adicionais àquele definido pelo Coeficiente de Aproveitamento Básico.

§ 2º – Os limites máximos de aproveitamento dos terrenos urbanos devem levar em consideração, além da capacidade de infraestrutura, o impacto de vizinhança, o impacto ambiental e o modelo de desenvolvimento urbano local.

§ 3º – A outorga do direito de construir acima do Coeficiente de Aproveitamento Básico deverá estar sujeita ao pagamento de contrapartidas que restituam à coletividade a valorização diferenciada recebida pelos beneficiários.

§ 4º – Na produção de habitação de interesse social, a autorização para construir acima do coeficiente único de aproveitamento básico não deve resultar em cobranças financeiras adicionais.

§ 5º – O exercício dos direitos de construir adicionais, definidos além do Coeficiente de Aproveitamento Básico, ainda que previsto em lei, devem ser expressamente autorizados pela autoridade municipal responsável pelo licenciamento de empreendimentos, ouvido o respectivo Conselho Municipal, tendo em vista o impacto local causado pelo aumento da densidade construtiva.

Art. 4º – Os recursos provenientes da cobrança do direito de construir acima do coeficiente único de aproveitamento básico devem ser destinados à promoção de habitação de interesse social, envolvendo, entre outros aspectos, a regularização fundiária plena e a provisão de moradia digna.

– O Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, ao longo de todo o processo de revisão do Plano Diretor de Campo Grande, desenvolveu inúmeras ações de esclarecimento a respeito da funcionalidade desse instrumento urbanístico, por meio da emissão de pareceres, realização de palestras, abordagem do assunto em entrevistas e reportagens, apresentação de recomendações ao poder público municipal, dentre outros. Uma das recomendações do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul foi o amplo debate da OODC junto a sociedade, mediante explicações, nas audiências públicas, da situação atual e de como esse cenário poderia ser modificado, em linguagem acessível, porém o poder público municipal priorizou discussões superficiais, relacionadas a aspectos e conceitos generelizados;

– Sem a OODC, a valorização resultante de qualquer aumento do potencial construtivo em uma determinada área da cidade é apropriada pelo dono do terreno durante sua comercialização, embora essa valorização seja decorrente de um potencial construtivo atribuído pela legislação, ou seja, pela ação regulatória do poder público ao ordenar a ocupação do seu próprio território urbano;

– Quando adequadamente regulamentada, a literatura urbanística leciona que a OODC objetiva, em linhas gerais, retirar expectativas do jogo imobiliário, IMPEDINDO A ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA, e, de modo específico, regular o mercado de terras urbanas e obter recursos para o financiamento de infraestrutura e equipamentos urbanos em áreas desassistidas;

– A OODC não se destina à desvalorização do valor da terra, pois o coeficiente de aproveitamento máximo continuará existindo nas áreas com melhor infraestrutura urbana, ou seja, mais preparadas para receber adensamento;

– A cidade não pode ser restringida a siglas de zoneamento, como zonas Z1, Z2 e Z3. A complexidade da cidade é bem maior, com uma periferia abandonada e sem a infraestrutura básica. Cabe ao poder público cumprir com a função social da cidade e da propriedade urbana, reestabelecendo o equilíbrio;  

– O Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul informa seguir disponível para o debate relacionado ao assunto. O objetivo da instituição é zelar pelo efetivo cumprimento da legislação e pelos direitos da sociedade.

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