Três anos depois de nove jovens terem sido mortos em uma operação da Polícia Militar em Paraisópolis (zona sul de São Paulo), o processo contra 12 policiais que estavam no local é uma disputa sobre o que aconteceu em 21 minutos período de um apagão das comunicações entre as viaturas e a central da polícia. Ninguém foi preso até hoje.
Foi neste intervalo entre 3h48 e 4h09 da madrugada de 1º de dezembro de 2019 que policiais cercaram o quarteirão onde acontecia o ponto central do baile da DZ7, na comunidade, usando bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral, disparando tiros de bala de borracha, golpes de cassetetes e rajadas de gás de pimenta. Houve um tumulto. Sem ter como fugir, uma parte da multidão estimada entre 5.000 e 8.000 pessoas correu para uma viela e foi encurralada pelos PMs.
O site UOL teve acesso ao processo e a laudos, que, juntos, têm cerca de 6.000 páginas. Em despacho, o juiz Ricardo Augusto Ramos, da 1ª Vara do Júri do Foro Central Criminal, não considerou os argumentos da defesa e ponderou que a denúncia descreveu, “na medida do possível”, os fatos acontecidos naquela madrugada.
Ao longo de três meses, a reportagem ouviu testemunhas do processo e familiares de vítimas, além de responsáveis pela acusação e pela defesa. A reportagem teve acesso aos áudios da polícia naquela noite, que integram os autos, não apenas às transcrições que constam no processo, e comparou com os depoimentos dos policiais.
Perícia mostrou que vítimas morreram sufocadas
Com o cerco dos policiais armados e os primeiros disparos de bombas e balas de borracha, a viela do Louro, onde as vítimas de paraisópolis foram esmagadas, virou uma espécie de moedor de carne: sua entrada tem 2,78 metros de largura no local onde os frequentadores do baile entraram contra uma saída, bem mais estreita, de 1,71 metro. Além disso, há um desnível em relação à entrada onde estão nove degraus. Ou seja, as pessoas foram pressionadas para frente e para baixo, sem qualquer área de escape.
As vítimas de paraisópolis, com idades entre 14 e 23 anos, já chegaram sem vida ao hospital. A causa da morte de oito pessoas: asfixia (quando os pulmões não conseguem realizar os movimentos de expansão e retração necessários à respiração). Para se ter uma ideia do desespero e do aperto na viela, um dos mortos, Mateus dos Santos Costa, sofreu traumatismo na coluna, conforme a necropsia.
Ao todo, 31 policiais foram investigados pelas mortes daquela madrugada, mas só 12 deles tornaram-se réus no processo. Eles respondem em liberdade. Procurada, a PM não informou que atividades exercem os 12 réus na corporação atualmente.
Massacre de Paraisópolis ocorreu antes de governo instalar câmeras nos uniformes da polícia
Não é comum os policiais pararem de usar o rádio durante uma operação. O procedimento padrão da PM é que a comunicação entre os policiais se dê por rádio porque o sistema grava as vozes e registra todos os diálogos. Falando em tese (sem discutir o processo em curso), dois especialistas ouvidos pela reportagem afirmaram que já houve casos em que os policiais usaram seus celulares durante operações para evitar o registro das conversas.
Fernando Capano, advogado de defesa dos policiais, alega que há zonas de sombra de rádio na região.
Embora seja um caso complexo, a disputa jurídica envolve duas ideias simples e antagônicas: a defesa dos policiais militares alega que a denúncia apresentada pelo MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo) se limita a dizer que os policiais agiram “em conjunto e com violência” —ou seja, sem individualizar o que cada réu fez durante os 21 minutos-chave do caso. Já a Promotoria afirma que, diante das particularidades do caso, “a denúncia narra de forma minuciosa, objetiva e clara” o que fizeram os acusados.
A ação da PM e as mortes em Paraisópolis ocorreram oito meses antes de o governo paulista começar a instalar as primeiras câmeras corporais nos uniformes dos agentes (o que aconteceu em 1º de agosto de 2020). Segundo o então governador, João Doria (à época no PSDB), o objetivo da medida era dar mais transparência às ações policiais.
“A gente ficou encurralado no meio e eles fecharam as duas pontas”
Aproximadamente um minuto depois em que o rádio dos policiais ficou em silêncio coincide com o cerco das viaturas ao baile. Na versão apresentada em depoimento, o subtenente Leandro Nonato disse que sua equipe foi rodeada pela multidão que jogavam garrafas e pedras. Ele contou que uma garrafa quebrou o vidro traseiro da viatura. E que foi necessário que ele e outros policiais usassem bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral, tiros de bala de borracha e cassetetes para se protegerem e controlar a situação.
A versão das testemunhas é distinta. Uma jovem falou que os PMs vieram na direção da multidão “jogando bombas com uma arma grandona na mão e agredindo [as pessoas] com cassetetes”. Que pararam na frente da viela e jogaram mais bombas. E que, durante o tumulto, ela sentiu uma queimação na perna esquerda e correu.
“A gente ficou encurralado no meio, eles [PMs] fecharam as duas pontas”, disse a testemunha, que terá o nome preservado. Câmeras de uma distribuidora de gás registraram o vaivém das pessoas que tentavam passar pelo cerco.
A jovem conta que conseguiu passar pelos PMs e contou que um policial tentou bater nela com o cassetete, mas ela se abaixou e dobrou a esquina. Enquanto corria, ela sentiu uma queimação na perna. Era um tiro de bala de borracha que havia tomado no início da correria. A mulher acabou socorrida por um desconhecido. Dois vídeos mostram policiais nessa esquina agredindo com cassetetes as pessoas que tentavam sair do quarteirão.
Outra testemunha do processo, que também terá a identidade preservada nesta reportagem, contou que ficou perdida com o quarteirão cercado de PMs. Tentou escapar por uma esquina. Não deu certo. Correu para a oposta. Não conseguiu escapar. Tentou entrar na viela do Louro. Ao ver os policiais agredindo os frequentadores do baile, conseguiu se esconder dentro de uma casa.
Encurraladas, vítimas de paraisópolis gritavam que não conseguiam respirar
Sem ter para onde correr, os frequentadores procuravam entrar em bares, casas e becos. Comerciantes baixaram as portas. Cerca de 50 pessoas conseguiram entrar em uma residência. Outra testemunha contou que também conseguiu entrar em uma casa.
Uma adolescente contou que uma garrafa de vidro jogada por um PM acertou o rosto dela. Com o quarteirão cercado, a maioria da multidão correu para a viela do Louro e foi encurralada pelos policiais.
Nos autos do processo, as pessoas contaram que não dava para se mexer. Uma falou que havia tanta gente que não conseguia pôr os pés no chão. E que alguns frequentadores na entrada do beco falaram: “Me ajuda, tô morrendo”, “deixa eu passar, senhor” e “eu não estou respirando”. Outras choravam.
Enquanto isso, conforme a versão das testemunhas, os PMs gritavam “vai morrer”, “vai morrer todo mundo”, “vai morrer, vai conhecer o demônio mais cedo” e “vai embora, caralho”. Um vídeo gravado por um rapaz que estava em frente à viela flagrou agressões e gritos dos policiais.
Quando o beco ficou mais vazio, nove jovens –entre eles uma moça– foram encontrados desacordados e caídos na escada, na entrada da viela do Louro.
Só às 5h02, eles chegaram a dois hospitais. Tarde demais: já estavam todos mortos. (Com informações UOL)
AliançA FM