Cotas raciais revelam incômodos e preocupação com fraudes

Cotas raciais são reservas de vagas em vestibulares, provas e concursos públicos destinadas a pessoas de origem negra, parda ou indígena. As cotas visam a acabar com a desigualdade racial e o racismo estrutural resultantes de anos de escravidão no Brasil, que ainda excluem pessoas negras e indígenas da universidade, do mercado de trabalho e dos espaços públicos.

Como funcionam as cotas raciais?

As cotas são reservas de vagas para determinados segmentos minoritários da população, como pessoas negras (pretas ou pardas), indígenas e pessoas com necessidades especiais. No caso da atribuição das cotas para ingressoem cursos de graduação em universidades públicas federais, além da origem étnico-racial, o candidato à vaga reservada deve ter cursado todo o seu ensino médio em escolas públicas.

Dessa maneira, as universidades públicas oferecem um duplo sistema de cotas: uma parcela da reserva de vagas destina-se a estudantes de escola pública, independentemente da origem étnico-racial, e a outra parcela destina-se a estudantes de escola pública que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas.

As cotas raciais visam a inserir a população negra na universidade pública e em cargos públicos, criando um sistema de equidade social.
As cotas raciais visam a inserir a população negra na universidade pública e em cargos públicos, criando um sistema de equidade social.

No atual sistema de ações afirmativas para ingresso em universidades e institutos federais de ensino, 50% das vagas devem ser destinadas a pessoas oriundas de escolas públicas. Dessas vagas, 25% destinam-se a pessoas com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo, e a outra metade está liberada para pessoas com renda familiar superior a 1,5 salário mínimo, desde que tenham cursado os três anos do ensino médio em escolas públicas.

As ofertas de vagas restritas por critérios étnico-raciais encaixam-se nessa reserva de 50% das vagas totais oferecidas pela universidade e por cada curso, de acordo com o edital do vestibular ou do Sisu. Para calcular o número de vagas destinadas a pretos, pardos e indígenas, utilizam-se dados dos censos demográficos. Regiões com maior número de negros devem oferecer uma maior reserva de vagas para essas pessoas, estados com maior número de indígenas devem oferecer uma maior reserva de vagas para indígenas e assim sucessivamente.

No caso de concursos para investidura em cargos públicos, há uma reserva de 20% do total de vagas ofertadas em um edital para pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. Nesses casos, a autodeclaração com documentação comprobatória (como certidão de nascimento, certidão de alistamento militar ou RG do candidato e até de seus ascendentes diretos – mãe e pai) é suficiente para que uma pessoa possa concorrer a uma vaga no concurso pela lei de cotas.

Já no caso das universidades e institutos federais, além da autodeclaração, o candidato deve passar por uma entrevista com a banca examinadora a fim de comprovar a veracidade da autodeclaração. Um problema resultante desse último caso é que não há como expressar uma objetividade concreta para reconhecer pessoas pardas, e a subjetividade dos critérios adotados por examinadores já causou injustiças e até fraudes.

Em 2007, na UnB (essa instituição adota um sistema de ações afirmativas desde 2004, oito anos antes da sanção da lei de cotas, colocando a instituição como vanguarda entre as universidades federais no quesito de ações afirmativas), dois gêmeos idênticos que se autodeclararam pardos tiveram confirmações diferentes: um foi aceito como pardo e outro, não. Após recurso, o irmão que teve seu pedido de cota negado foi aceito como pardo. Isso mostra que pode haver falhas nesse sistema de verificação.

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Lei de cotas raciais

Atendendo a reivindicações de movimentos sociais, o Poder Legislativo teve de criar leis específicas para estabelecer ações afirmativas para ingresso de pessoas pretas, pardas ou de origem indígena em cursos superiores de universidades públicas federais e em concursos públicos para órgãos e empresas da administração pública federal. A justificativa dessas leis encontra-se na falta de igualdade racial e representatividade de pessoas negras e indígenas nos cursos superiores e nos concursos públicos.

O acesso à universidade pública ainda está longe de ser igual para negros e brancos.
O acesso à universidade pública ainda está longe de ser igual para negros e brancos.

Apesar de a maior parte da população brasileira ser negra (54%, segundo o Pnad/IBGE de 2017), essa população encontra-se ainda fortemente excluída do ensino superior, ocupa postos de empregos que exigem menor qualificação e tem a renda mensal menor que a da população considerada branca. As leis de ações afirmativas surgiram para tentar corrigir essas distorções sociais provocadas pela escravização de pessoas oriundas da África no Brasil por quase 300 anos.

Temos, atualmente, duas leis específicas sobre cotas que incluem a temática racial: a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, e a Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. A primeira refere-se ao acesso às universidades públicas federais, e a outra, aos concursos públicos no âmbito federal.

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Quem criou as cotas raciais?

Um sistema de cotas foi adotado pela primeira vez na Índia, na década de 1950, para promover ações afirmativas que integrassem a população tradicionalmente pertencente às castas excluídas nos sistemas educativos, na administração pública e nos cargos políticos.

O antigo sistema de castas indiano fazia distinção entre as pessoas com base na origem da família, criando um aparato social de forte exclusão das populações pertencentes à casta mais baixa ou que não possuíssem casta: os dalits (sem castas, eram considerados no sistema indiano tradicional como pessoas tão indignas que não poderiam sequer ser tocadas por outras, pois isso causaria uma contaminação espiritual) e os shudras (pessoas que pertenciam à casta mais baixa e, no sistema tradicional, tinham uma natureza servil que os condenava a ocupar os piores empregos).

No Brasil, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira instituição pública de ensino a adotar um sistema de ações afirmativas, em 2003. A primeira instituição pública federal a adotar um sistema de cotas foi a Universidade de Brasília (UnB), em 2004.

UnB, a primeira universidade federal a aderir um sistema de cotas no Brasil.
UnB, a primeira universidade federal a aderir um sistema de cotas no Brasil.

A partir de 2007, a elaboração de um programa de expansão e investimento nas universidades e institutos federais, chamado Reuni, ampliou o debate sobre as cotas raciais por meio dos conselhos universitários. A proposta de implementar cotas para estudantes de escolas públicas com subcotas para negros, pardos e indígenas foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal, que votou por unanimidade pela constitucionalidade das ações afirmativas. Assim, foi sancionada, em 2012, a Lei 12.711/12, que regulamenta o sistema de cotas em universidades e institutos federais de ensino.

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Cotas raciais no mundo

Diversos países adotam diferentes sistemas de cotas para incluir as populações vulneráveis e excluídas na educação, no serviço público e em sistemas políticos. Veja alguns países que compõem a lista:

  • África do Sul;
  • Austrália – promove cotas para aborígenes;
  • Canadá – promove cotas para os inuítes (esquimós);
  • Colômbia – cotas para negros e indígenas nas universidades;
  • Índia – cotas para inserção das pessoas excluídas pelo antigo sistema de castas indiano;
  • Nova Zelândia;
  • Estados Unidos – com o fim da segregação oficial e a explosão dos movimentos pelos direitos da população negra, o presidente John Kennedy instaurou um sistema de cotas para crianças negras acessarem escolas públicas que geralmente eram frequentadas por crianças brancas. Também houve um processo de instalação de cotas em algumas universidades. Algumas críticas apontam que tais ações afirmativas beneficiaram apenas as famílias negras de classe média. A Universidade de Harvard e a Universidade Columbia foram as primeiras a adotar sistemas de cotas para negros em 1969.

Argumentos favoráveis e argumentos contrários às cotas raciais

O debate sobre as cotas raciais intensificou-se no Brasil após a sanção da lei de cotas. De um lado, movimentos sociais, ONGs, intelectuais e juristas defendem a necessidade das cotas sociais e raciais para solucionar os problemas de desigualdade no país. O que esses setores da sociedade defendem é que a exclusão social e o racismo nos levam a uma necessidade de implantar medidas que promovam a igualdade, reconhecendo que primeiro é preciso se ter um sistema de equidade, ou seja, diante das dificuldades enfrentadas por camadas excluídas, é preciso criar ações afirmativas que efetivamente incluam essas pessoas na sociedade, após anos de exclusão resultada da escravização e do racismo estrutural.

Veja os argumentos pró e contra as políticas de ações afirmativas:

  • O critério racial adotado não existe biologicamente, visto que todos os seres humanos têm genótipos iguais, independentes da cor da pele. Como contra-argumento, defensores das cotas afirmam que o fenótipo das pessoas negras coloca-as na condição de exclusão por conta do etnocentrismo histórico.
  • As cotas raciais criam uma distinção que subjuga a capacidade das pessoas negras. Como contra-argumento, os defensores das cotas afirmam que, em um primeiro momento, é necessário esse tratamento desigual para que se inicie um processo de inclusão das populações vulneráveis, que, por questões sociais, não têm acesso a muitos espaços e serviços públicos.
  • As cotas ferem o princípio da meritocracia, colocando alguém com uma pontuação menor em vantagem em relação a alguém com uma pontuação maior. Como contra-argumento favorável às cotas, dizem que é impossível estabelecer um sistema meritocrático justo em um lugar onde não há igualdade de oportunidades.
  • Não se deveria pensar em cota, mas em melhorar o sistema de educação básica público, dando a todos as mesmas chances de ingressar na universidade. Como contra-argumento, os favoráveis às cotas dizem que as ações afirmativas são uma primeira resolução do problema, que deve estar acompanhada de investimentos na educação básica pública, para que, futuramente, com uma educação básica de qualidade e pessoas negras inseridas no ensino superior, as cotas não sejam mais necessárias.


Por Francisco Porfírio
Professor de Sociologia 

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