Uma decisão judicial do Tribunal de Justiça do RS reconheceu uma mulher trans como mãe do filho concebido por ela, em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Nesta terça-feira (27), a família teve acesso à certidão de nascimento de inteiro teor aguardada há dois anos: na filiação, constam duas mães biológica.
A educadora Ágata Vieira Mostardeiro, de 27 anos, é transexual e possui o documento de identidade retificado com o nome feminino. Ela participou da concepção do filho com a então companheira, mas foi impedida de registrar o menino como mãe biológica após o parto, em agosto de 2018.
“Foi uma série de erros que aconteceram. No hospital, não colocaram o meu nome na declaração de nascido vivo [documento que é usado para a elaboração da certidão de nascimento]. No cartório, se negaram”, conta Ágata.
Segundo ela, o Ministério Público foi acionado e uma juíza foi consultada. A opção dada pela magistrada foi que Ágata apresentasse documentos e exames que comprovassem sua condição biológica, além de que a ex-companheira atestasse que as duas tinham concebido a criança juntas.
Ágata não aceitou e procurou a advogada Gabriela Souza para pedir na Justiça o reconhecimento na certidão.
“Tenho a certidão retificada, o estado me reconhece como mulher, o outro nome foi apagado, mas não conseguiu me reconhecer como mãe”, lamenta Ágata.
A educadora conta que, além do sofrimento psíquico, causado pela situação, não foi possível incluir o bebê no plano de saúde da família. Por isso, ela e a ex decidiram que Ágata seria registrada como mãe sócio-afetiva, que não pressupõe vínculo biológico. Para isso, a ex-companheira precisou assinar um atestado de que desistia de procurar pelo pai biológico da criança.
A certidão saiu após 21 dias do nascimento. Mesmo assim, devido ao período de carência, o filho precisou ser internado pelo SUS.
Mãe trans consegue na Justiça reconhecimento da maternidade biológica do filho no RS
Realidade dos fatos
Na decisão, o juiz Nilton Tavares da Silva, da 5ª Vara de Família de Porto Alegre, observa que o filho foi gerado por ambas, sem reprodução assistida, o que não deixa dúvidas da filiação da criança.
“Não se pode perder de vista a verdadeira ascendência biológica desta em relação à criança, fato que não pode ser ignorado. E mais do que isso, a verdade biológica sempre que possível deve constar no assento de nascimento da criança, pois, como sabido, todo e qualquer ato registral deve primar sempre que possível por retratar a realidade dos fatos”, diz o juiz, que assinou a sentença no dia 18 desse mês, data do aniversário de Ágata e dias após o aniversário de dois anos do menino.
A decisão pode ser considerada rara. Segundo informações do TJ, no Departamento de Biblioteca e Jurisprudência não constam outras determinações semelhantes. O tribunal salienta, no entanto, que nem todas as decisões constam na jurisprudência.
Para Ágata, a situação foi “mais uma violência” a que pessoas trans são submetidas, ao terem direitos negados.
“Vejo como uma vitória enorme que abre várias portas para os LGBT”, conclui a mãe biológica, agora oficialmente reconhecida.
Criança completou dois anos em agosto — Foto: Arquivo pessoal
Nova resolução
Algumas semanas depois do nascimento do filho de Ágata, um novo provimento, publicado pela Corregedoria-Geral de Justiça do estado, estabeleceu as regras para que pessoas trans possam registrar seus filhos nos cartórios do RS. Bastam a Declaração de Nascido Vivo e os documentos de identidade dos genitores, desde que a pessoa trans apresente a averbação do prenome e do gênero, que será conferida pelo registrador.
Para a advogada Gabriela Souza, a resolução é fruto da luta de Ágata pelo reconhecimento do menino. “Ele criou a própria lei que julgou o caso dele”, comenta.
Segundo a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen/RS), o registro solicitado por Ágata não foi feito devido à falta de regramento anterior. “Com a publicação do Provimento 30, casos como este passaram a ter regulamentação e a decisão judicial só corrobora o que passou a ser a norma desde então”, informa a associação, por meio de assessoria.
Questionada pelo G1, a Arpen/RS informou que não tem a informação sobre quantos registros de pais biológicos transexuais podem ter sido feitos desde a publicação da regulação.