O Ministério Público e Defensoria Pública entraram na Justiça contra a empresa, acusada de grilagem. Empresa usou contêineres e cavou buracos para bloquear acesso de comunidade quilombola no Alto Rio Acará
Com um longo histórico de denúncias e processos na justiça sobre danos ao meio ambiente, grilagem de terra e desrespeito aos direitos humanos contra populações tradicionais, a empresa Agropalma protagonizou mais um capítulo de afronta a moradores da região onde atua. Os membros de uma comunidade quilombola Nossa Senhora da Batalha, no limite entre os municípios do Acará e Tailândia, no nordeste do Pará, foram surpreendidos esta semana com mais uma ação da Agropalma contra a comunidade. A empresa colocou, nos acessos àquela comunidade, grandes contêineres para impedir que os quilombolas saiam e entrem no território. Eles, agora, estão com dificuldades para comprar comida e remédio, além de ter o acesso ao rio simplesmente bloqueado.
As compras são feitas na Vila dos Palmares, distante 9 km daquela comunidade e que fica em Tailândia. E eles fazem esse percurso basicamente em motos. Para impedir o deslocamento dos moradores, a empresa também mandou cavar grandes buracos. Para intimidar, é frequente a presença de seguranças armados na área, além de drones que sobrevoam a área, usados para vigiar os quilombolas. “Sabemos do nosso direito. Eles passaram por cima das recomendações (do Ministério Público do Pará). Rasgaram a Constituição Federal”, diz o presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo da Comunidade da Balsa, Turi açu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará (ARQVA), José Joaquim Pimenta. A entidade luta pela titularidade definitiva do território.
Na área reocupada pelos quilombolas há crianças e pessoas idosas e doentes. “Eles estão presos. É um cárcere privado”, denuncia.
“Meu pai, tio e sobrinho estão enterrados aqui”, diz quilombola
O cemitério da comunidade conta cerca de 150 sepulturas identificadas, onde foram enterrados os corpos dos familiares dos quilombolas, comprovando que a comunidade ocupa o território há várias gerações. “Meu pai, tio e sobrinho estão enterrados aqui”, diz Ana da Silva. De acordo com relatório elaborado por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), há quatro cemitérios nas áreas ocupadas pela empresa.
Para evitar o acesso dos quilombolas e dificultar a passagem de veículos, contêineres foram usados para isolar a comunidade
Três deles são áreas quilombolas, e uma é indígena, da etnia Tembé. Relatos de vários moradores que antes moravam na região à beira do rio apontam que a gigante do agronegócio nega o direito de se prestar homenagem aos parentes que jazem ali. “Essa proibição deles homenagearem seus mortos é um grande trauma coletivo”, afirma Elielson Silva, doutor em Ciências – Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (Naea/UFPA) e pós-doutorando em Antropologia pela Universidade Estadual do Maranhão (Uema).
O idoso Raimundo Serrão, que tem uma deficiência física, conta: “Eles (os seguranças) têm armas. Nossa arma é a malhadeira para pegar peixe, o machado para rachar a lenha. Esse território é nosso. Temos parentes enterrados aqui”, afirmou. Ainda segundo ele, os moradores que conseguem sair da comunidade, onde foram erguidos 28 barracos cobertos por lona, não conseguem retornar para a comunidade. “Os seguranças não deixam”, afirma seu Raimundo Serrão.
“Não estou nem aí”, disse funcionário da empresa sobre adoecimento de crianças do quilombo
Ele conta que as crianças passaram mal, pois beberam a água do rio Acará. E tiveram dor de barriga e diarreia. “Não tivemos acesso pra comprar o remédio. Falamos pro chefe da empresa aí no dia em que eles estavam cavando o buraco. ‘E se essas crianças adoecerem?’ Ele disse: ‘não tô nem aí'”. Para driblar a segurança armada e esses obstáculos, os moradores criam rotas alternativas, por dentro da mata. Mata essa onde, disseram, há animais selvagens e peçonhentos. Quando conseguem superar os obstáculos, eles vão até a Vila dos Palmares para comprar comida e medicamentos.
Para voltar, deixam as motos na casa de algum amigo, na vila, e seguem a pé, pois, é mais fácil, driblar a segurança, mesmo aumentando o risco de ser atacado por animais. Os seguranças também montaram uma base na área, para acompanhar de perto a passagem dos moradores. Antes do bloqueio, o trajeto do quilombo até a Vila dos Palmares durava 20 minutos de moto. Agora, se quiserem ir pelo rio, de canoa, levam mais de oito horas só para ir e voltar.
O lavrador José Antonio Saraiva, 42 anos, conta que a esposa nasceu e foi criada “nessa beira de rio aí”. “No domingo fomos lá para dentro tomar posse do que é da gente. Quando a gente veio de lá, para ter acesso na vila, já tá ‘mina’ (muitos) de segurança armado, para impedir a gente passar. Já cavaram um imenso buraco, pra gente não passar”, diz. “Tem muita gente lá que não tem mais comida. Lá tem criança, idoso, gente que precisa de remédio. Minha mulher toma remédio pra pressão alta, diabete. Estamos esperando que a Justiça tome providência, para gente ter acesso livre”, afirma.
Comunidade espera que órgãos de segurança e direitos humanos garantam o bem-estar do quilombo e dos moradores tradicionais da área
MPPA ajuizou ação contra Agropalma, que bloqueou área quilombola
O Ministério Público do Estado (MPPA), por meio da Promotora de Justiça Agrária de Castanhal, em exercício, Herena Corrêa de Melo, ajuizou, na quinta-feira (10), Ação Civil Pública de obrigação de fazer, com pedido de tutela antecipada de urgência e decretação de medidas protetivas, contra a Agropalma. A ação objetiva a proteção dos direitos humanos fundamentais das Comunidades Quilombolas de Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Alto Rio Acará, e outras que estão tendo seus direitos de locomoção, vida, moradia, alimentação e “acesso a serviços públicos violados sistematicamente pela empresa Agropalma, na divisa dos municípios de Acará e Tailândia no Estado do Pará, local identificado como Vale do Alto Rio Acará, perímetro e proximidade da denominada Fazenda Roda de Fogo”.
Na ação o MPPA requer, liminarmente, que a Justiça determine à empresa a reconstrução das vicinais que foram destruídas ou obstaculizadas. E que seja determinado à Agropalma que retire imediatamente o efetivo de pessoal de segurança ou agentes prepostos que se encontram na área ocupada ou área de uso comum das famílias quilombolas ou de outros coletivos, ou em áreas que devam fazer uso para sobrevivência, atividades de pesca, caça, coletas e frutas, frutos e sementes.
Além disso, que a empresa remova imediatamente todos os obstáculos (máquinas e containers) utilizados para obstaculizar o acesso livre daquelas pessoas na área, bem como retire todo e qualquer dispositivo de segurança, que impeça o acesso ao rio pelas comunidades tradicionais da Vila da Balsa, Turiaçu, Palmares e outras. O Ministério Público do Estado requer ainda que a Justiça aplique medidas protetivas em favor dos comunitários do território, para que a Agropalma, seus representantes e prepostos mantenham distância mínima de 500 metros daquelas pessoas.
Dona Ana lamenta que até o acesso ao cemitério da comunidade está sendo dificultado deliberadamente
Promotora diz que “os quilombolas são ocupantes tradicionais daquele território”
Em caso de descumprimento de quaisquer das determinações, o MPPA pede seja a empresa condenada a pagar multa civil no valor de R$100 mil por dia de descumprimento. Na ação, a promotora de Justiça Agrária Herena Corrêa de Melo diz que “os quilombolas são ocupantes tradicionais daquele território, se movimentam ali há décadas, tendo seus direitos de livre ocupação restringidos pelas fraudes documentais perpetradas naquelas áreas por inúmeros atores”.
E agora, sob novo ardil, afirma, “são vítimas daquilo que a empresa alardeia como desforço imediato, no intuito de garantir uma posse que sequer detém, já que o local de permanência daquelas pessoas não está contido naquilo que a empresa teria como sua antes das decisões judiciais, bem como não pode inviabilizar a circulação pelas vias comuns de acesso à beira de rio, e as demais comunidades quilombolas, não podem ser objeto de retenção”.
O MPPA, por meio da Promotoria de Justiça Agrária da 1ª Região, sediada em Castanhal, recomendou à Agropalma S/A a adoção de medidas que não obstaculizassem, impedissem ou restringissem o tráfego de comunitários do Alto Rio Acará pela estrada que dá acesso ao cemitério da antiga Vila Nossa Senhora da Batalha, localizado às margens do Rio Acará, e ao rio Acará no município do Acará/Tailândia, com a finalidade de assegurar direitos de locomoção e liberdade religiosa, crença e consciência, “no que foi ignorado pela empresa, conforme se comprova dos termos de declarações, áudios e vídeos juntados ao procedimento administrativo”.
Seguranças armados intimidam e ameaçam moradores
Seguranças contratados pela Agropalma constantemente impedem, intimidam e ameaçam com violência moral, com a utilização ostensiva de armas de fogo as famílias e fazem vigilância ostensiva. Informa ainda o Ministério Público que “essa conduta desrespeitosa da Agropalma, documentada em vídeos e áudios e divulgada nas mídias, revelou desprezo não apenas pelos moradores, os quais constituem a vizinhança do território, mas enfatizou o descumprimento da Recomendação N. 001/2022 deste Ministério Público Agrário do dia 12 de janeiro de 2022, que estabeleceu normas e procedimentos que a empresa deveria seguir para respeitar os direitos das comunidades, inclusive o de ir e vir, previstos na Constituição Federal”.
Joaquim Pimenta reforça a luta pelo reconhecimento da titularidade definitiva da comunidade
Defensoria quer que Estado reconheça a propriedade coletiva da terra rural aos quilombolas
A Defensoria Pública do Pará ajuizou Ação Civil Pública contra o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e a empresa fornecedora de óleo de dendê Agropalma requerendo intervenção da Delegacia Especializada em Conflitos Agrários, Deca, em conflito agrário na antiga comunidade Nossa Senhora da Batalha, terra rural tradicional quilombola.
Na ação, a DPE requer que a Justiça determine a abertura das estradas e demais áreas de acesso comum, como estradas, ramais de uso comunitários e margens do rio Acará e igarapés, incluindo a retirada das placas proibitiva de caça e pesca, base de subsistência de dezenas de povos, permitindo o livre acesso às comunidades tradicionais. Além disso, solicita que o Estado do Pará e o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) reconheçam a propriedade coletiva da terra rural aos quilombolas sob a região controlada pela empresa Agropalma. Determina, ainda, multa de R$ 10 mil em caso de descumprimento. Segundo a ação judicial, esse conflito teve início na década de 1980, quando quilombolas começaram a serem expulsos da região.
“O conflito tem origem nas disputas pelas terras públicas hoje controladas pela Agropalma, envolvida em prática de grilagem desse mesmo território. Desde 2016, tramita no Iterpa o processo administrativo de regularização fundiária, iniciado com relatos de que os povos tradicionais começaram a serem expulsos de suas áreas por volta de 1980 por fazendeiros e, posteriormente, pela própria empresa”, informa o documento.
A Defensoria Pública do Estado acompanha o caso desde 2020. “Nessa área estão localizadas moradias e outros símbolos importantes para comunidades quilombolas, como cemitérios, que estão sob controle da empresa. O Iterpa abriu processo de regularização fundiária, mas não o concluiu, o que tem causado esses conflitos agrários, já que há um movimento de retomada do território”, diz a defensora pública Andréia Macedo Barreto, da Defensoria Agrária de Castanhal.
Reportagem da Carta Capital mostra que empresa opera com fraudes e suborno
Reportagem da Carta Capital informa que, além dos quilombolas e indígenas expulsos de seus territórios viverem sob vigilância e terem as águas contaminadas, os moradores e pequenos proprietários de comunidades da região são usados para trabalho escravo. De acordo com Marques Casara, jornalista, e diretor executivo do Instituto Papel Social, agência especializada em investigação de cadeias produtivas, de todas empresas que atuam na região, “a Agropalma é a empresa mais criminosa dessas todas. Ela opera com fraudes, ela opera com suborno e ela opera com contratos desumanos que maquiam o trabalho escravo. Este é o cenário”, ainda segundo a publicação.
Casara diz que o trabalho infantil é uma prática generalizada em toda a área, e em diversas empresas que atuam na produção de óleo de palma no nordeste do Pará, incluindo a Agropalma: “opera-se ali um discurso ilegal de que isso meio que faz parte do dia a dia das famílias. Que as crianças só vão para ficar junto, que elas não trabalham”.
AliançA FM
Fonte: O Liberal